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quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Biblioteca universal, de Voltaire ao Google.

A Biblioteca universal, de Voltaire ao Google.

Por mais poderoso que seja o ideal que representa, a "república das
letras", que deveria permitir a todos o acesso ao saber e à
literatura, é um mito. Terá a internet decretado o fim desse elitismo
fantasiado de princípio democrático? O fato de uma empresa privada se
encarregar desta missão deixa a resposta em aberto.


por Robert Darnton


O século XVIII, o das Luzes, preconizava uma confiança total no mundo
das ideias – chamado pelos enciclopedistas de "república das letras".
Um território sem polícia nem fronteiras, e sem desigualdades, senão
as dos talentos. Nele, qualquer um podia se instalar, desde que
exercesse um dos dois atributos da sua cidadania: a escrita e a
leitura. Cabia aos escritores formular ideias, e aos leitores avaliar
sua pertinência. Promovidos pela força da palavra impressa, os
argumentos eram difundidos em círculos concêntricos, e apenas os mais
convincentes levavam a melhor.

Folheando a volumosa correspondência de Voltaire, Jean-Jacques
Rousseau, Benjamin Franklin ou Thomas Jefferson, mergulhamos no âmago
da república das letras. Esses quatro escritores debatiam a respeito
de assuntos cruciais da sua época, por meio de um fluxo ininterrupto
de cartas que, conectando a Europa à América, já apresentava todas as
características de uma rede de informação transatlântica.

Aprecio mais particularmente a correspondência entre Jefferson
(1743-1826) e James Madison (1751-1836). Eles gostavam de falar de
tudo, em especial sobre a Constituição estadunidense, que estava sendo
redigida. Enquanto Jefferson representava a jovem república em Paris,
Madison colaborava da Filadélfia. Jefferson adorava frequentar as
livrarias da capital francesa e comprava com frequência livros para o
seu amigo. A enciclopédiade Denis Diderot foi uma das suas aquisições.

De fato, dois futuros presidentes dos Estados Unidos discutindo sobre
livros na "Web" das Luzes é uma imagem instigante. Mas a república das
letras era democrática apenas nos seus princípios. Na realidade, ela
pertencia aos ricos e aos aristocratas. Diante da impossibilidade de
viver de suas obras, a maioria dos escritores se via de fato obrigada
a cortejar os poderosos, solicitar empregos fáceis e bem remunerados,
mendigar um cargo em algum jornal controlado pelo Estado, usar de
artimanhas com a censura e tentar abrir caminho na selva dos salões e
das academias, onde as reputações eram feitas e desfeitas. As
diferenças sociais exacerbavam os conflitos pessoais. Longe de
funcionar como uma praça pública igualitária, a república das letras
era acometida de um mal que corroía todas as sociedades do século
XVIII: os privilégios.

Ainda assim, acredito que as Luzes despontam, até hoje, como a melhor
argumentação em favor da abertura em geral, e do livre acesso aos
livros em particular.

Mas e atualmente, no mundo das bibliotecas de pesquisa e do virtual,
será que os princípios e a realidade também se contradizem entre si,
como no século XVIII? A maioria de nós, devemos admitir, concorda com
os princípios em que se baseiam as grandes bibliotecas públicas.
"Livre para todos" são os dizeres que podem ser lidos acima da entrada
da Biblioteca de Boston. No mármore da de Nova York, uma citação de
Jefferson está gravada em ouro: "Eu considero a educação como o melhor
meio para aprimorar a condição humana, promover a virtude e garantir a
felicidade dos homens".

Para Jefferson, as Luzes deviam o seu brilho aos escritores e aos
leitores, aos livros e às bibliotecas. Esta confiança no poder de
emancipação das palavras está inscrita no primeiro capítulo da
Constituição dos Estados Unidos, que subordina os direitos autorais –
reconhecidos apenas "por uma duração limitada" – ao princípio superior
do "progresso da ciência e das artes úteis". Os fundadores da
república entendiam o direito dos autores a obter uma justa
retribuição pelo seu trabalho intelectual, mas sublinhavam a
preeminência do interesse geral sobre o lucro individual.

E como medir o peso respectivo desses dois valores hoje em dia? Qual
é, por exemplo, a duração do copyright nos EUA? Segundo a lei de 1998,
o Sonny Bono Copyright Term Extension Act (também chamada de "lei
Mickey", pois o personagem fetiche de Disney perigava então cair em
domínio público), o direito autoral aplica-se a uma obra enquanto o
autor estiver vivo, e mais 70 anos após a sua morte. Isso quer dizer
que o interesse particular do autor e dos seus legatários permanece
acima de toda e qualquer consideração durante mais de um século. A
grande maioria dos livros norte-americanos publicada no decorrer do
século XX ainda não caiu em domínio público. Na internet, o livre
acesso a essa herança cultural se exerce geralmente apenas para as
obras anteriores a 1º de janeiro de 1923, uma data a partir da qual a
maior parte das editoras inicia a vigência do seu copyright. Esta
situação deverá perdurar por muito tempo ainda – a menos, é claro, que
grupos privados se encarreguem da digitalização da mercadoria, a
condicionem e comercializem dentro dos interesses devidamente
acordados dos seus acionistas.

Sair dos grandes princípios proclamados pelos fundadores da República
para chegar aos usos e costumes da indústria cultural de hoje equivale
a cair do céu das Luzes dentro do pântano do capitalismo global. Se
utilizássemos a sociologia do saber para examinar os tempos atuais – à
maneira de Pierre Bourdieu –, constataríamos que vivemos num mundo
gerido por Mickey.

Enquanto a república das letras havia se profissionalizado,
transformando-se numa república do saber, eis que ela se abre hoje
para os amadores – no melhor sentido da palavra, ou seja, os cidadãos
comuns apaixonados pelo conhecimento. A abertura vem sendo operada em
todo lugar pelo acesso a artigos digitalizados publicados
gratuitamente on-line em sites como o Open Content Alliance, Open
Knowledge Commons, OpenCourseWare e Internet Archive, ou ainda em
projetos declaradamente amadores tais como Wikipédia. A democratização
do saber está daqui para a frente ao alcance da mão, ao menos em
matéria de acesso às fontes. Não poderia o ideal das Luzes tornar-se
realidade?

Construídas no decorrer dos séculos ao preço de um enorme empenho de
esforços e de dinheiro, as coleções das bibliotecas podem ser
digitalizadas em grande escala por um custo módico – alguns milhões de
dólares, talvez, uma quantia irrisória se comparada com o investimento
que permitiu o seu desenvolvimento. Contudo, digitalizar as coleções e
vendê-las on-line, sem se preocupar em oferecer acesso livre para
todos, equivaleria a repetir o erro cometido com as revistas
científicas quando a sua gestão foi entregue a editoras privadas, só
que numa escala infinitamente mais vasta, já que isso faria da
internet uma ferramenta de privatização do saber público. Não haveria
nenhuma mão invisível, então, para atenuar o despenhadeiro entre o
interesse geral e o interesse privado. Apenas o público poderia
fazê-lo, mas quem o representa? Certamente não os legisladores que
adotaram a "lei Mickey".

Seria ingênuo identificar a Web às Luzes. Tudo o que ela faz é ser um
meio de difusão muito mais abrangente do que Jefferson teria
imaginado. Contudo, enquanto a internet estava sendo construída, passo
a passo, link por link, as grandes empresas não ficaram de braços
cruzados à beira do caminho. Elas querem controlar o jogo, apoderar-se
dele, possuí-lo. Elas rivalizam umas com as outras com tanta
ferocidade que os mais fracos desaparecem. O seu combate pela
sobrevivência deu à luz uma oligarquia de poder desmedido, cujos
interesses divergem muito dos do público.

Nós não podemos ficar parados esperando que os grupos privados
explorem o bem público de modo organizado e metódico! É verdade, nós
temos de digitalizar. Mas temos, sobretudo, de democratizar, ou seja,
generalizar o acesso à nossa herança cultural. De que maneira?
Reescrevendo as regras do jogo, subordinando os interesses privados ao
interesse público, inspirando-nos nos primeiros republicanos para
instaurar uma república digital do saber.

De onde vêm esses ímpetos utopistas? Do Google. Quatro anos atrás,
esta empresa começou a digitalizar livros que constavam do catálogo
das bibliotecas universitárias, colocando on-line trabalhos de
pesquisa em sua versão integral e disponibilizando títulos que já
tinham caído em domínio público, sem pedir um centavo sequer aos
interessados. Desde então, tornou-se possível, por exemplo, consultar
e baixar gratuitamente uma cópia digital da edição original de
Middlemarch, a obra-prima da romancista George Eliot publicada em
1871, registrada na Bodleian Library em Oxford. Todo mundo tirou
vantagem disso, inclusive o Google, que embolsou a receita dos
anúncios publicitários, relativamente discretos, difundidos em sua
página Google Book Search.

A empresa também andou digitalizando um número sempre crescente de
livros protegidos pelo copyright, dos quais ela publicou trechos
on-line para facilitar as pesquisas dos internautas. Diante disso, em
outubro de 2005, um coletivo de autores e de editoras, apavorados por
sua possível perda de receitas, intentou uma class action(ação em nome
coletivo) contra o Google, em nome da defesa dos seus direitos
patrimoniais. Em 28 de outubro de 2008, no final de negociações
intermináveis, as duas partes chegaram a um acordo.

Esse acordo prevê a criação de uma empresa batizada de Book Rights
Registry ("Registro dos direitos relacionados aos livros") encarregada
de representar os interesses dos autores e das editoras, detentores de
copyright. O Google tornará pago o acesso a uma gigantesca base de
dados composta, para começar, de títulos esgotados fornecidos pelas
bibliotecas universitárias. Colégios, universidades e coletividades
diversas, a ela poderão conectar-se comprando uma "licença
institucional". Outra licença, chamada de "acesso público", será
fornecida às bibliotecas públicas e proporcionará acesso gratuito à
base, mas num único computador. No caso de um usuário descontente se
recusar a entrar na fila, com esperança de que o posto cobiçado fique
livre, pensaram obviamente num serviço pago, sob medida, a "licença ao
consumidor". Além do mais, o Google compromete-se a cooperar com o
Book Rights Registry nas modalidades de partilha da renda assim
gerada, ou seja, 37% para si mesmo e 63% para os detentores de
copyright.

Paralelamente, a empresa dará prosseguimento à disponibilização
on-line de livros de domínio público, e que por sua vez poderão ser
baixados gratuitamente. Os 7 milhões de títulos que o grupo afirma ter
digitalizado antes de novembro de 2008, incluem 1 milhão de livros
"públicos", outro milhão sob copyright e até hoje disponíveis em
livrarias, e, por fim, 5 milhões também "protegidos" pelo copyright,
mas que estão esgotados ou são difíceis de achar. É esta última
categoria que fornecerá a grande massa dos bens comercializáveis por
via de "licença".

Contudo, um grande número de livros sob copyright permanecerá excluído
do banco de dados, a menos que seus autores, legatários e editoras
tomem uma decisão diferente. Portanto, eles continuarão sendo vendidos
no formato do papel impresso, à moda antiga, ou serão objeto de uma
comercialização em formato digital, quer para serem baixados por meio
da "licença ao consumidor", quer para serem editados sob a forma de
livros eletrônicos (e-books).

Resumindo, ao lermos o acordo firmado entre o Google, os autores e as
editoras, e após termos assimilado a sua filosofia – o que não é
tarefa fácil já que o documento se estende por 134 páginas e 15
apêndices –, ficamos boquiabertos: estão colocadas as fundações do que
poderia vir a ser a maior biblioteca do mundo. Uma biblioteca digital,
sim, mas que superaria de maneira arrasadora os estabelecimentos mais
prestigiosos das Europa e dos Estados Unidos. Além disso, o Google se
alçaria ao nível de maior livreiro comercial do planeta – o seu
império digital reduziria a Amazon ao nível de uma lojinha de bairro.

Como permanecer indiferente à perspectiva de ver as riquezas das
maiores bibliotecas universitárias estadunidenses permanentemente
disponíveis, ao alcance do clique de todos os internautas do mundo?
Não só a feitiçaria tecnológica do Google faria com que cada leitor
pudesse ter acesso aos livros que deseja, mas abriria também
possibilidades de pesquisa inesgotáveis. Dentro de certas condições,
os estabelecimentos associados ao projeto terão condições de recorrer
a cópias digitais de livros perdidos ou danificados para renovar seus
estoques. Além disso, o Google compromete-se a oferecer os textos de
maneira a torná-los acessíveis aos leitores deficientes.

Infelizmente, a promessa feita pela empresa de garantir um acesso
livre aos seus arquivos num único terminal de computador em cada
biblioteca pública tem poucas chances de satisfazer à demanda,
sobretudo nos estabelecimentos mais visitados. Além disso, ela vem
acompanhada de uma restrição: os leitores interessados em imprimir um
texto sob copyright só poderão fazê-lo mediante o pagamento de
determinada quantia. Mesmo assim, as pequenas bibliotecas municipais
dos EUA disporão, daqui para a frente, de um fundo virtual mais
importante do que a grande biblioteca central de Nova York. Sim, o
Google poderia efetivamente tornar o sonho das Luzes uma realidade.
Mas será que fará isso?

OGoogle não é uma confraria e não se concebe como um monopólio. A
empresa diz perseguir até mesmo um objetivo louvável, que é o de
promover o acesso à informação. Mas o acordo que assinou a torna
invulnerável a toda forma de concorrência. A maioria dos autores e das
editoras que têm um copyrightvigente nos Estados Unidos está
automaticamente coberta por este documento. Evidentemente, eles podem
optar por ficar de fora do dispositivo, mas o que quer que façam,
nenhum outro projeto de digitalização poderá ver a luz do dia sem
obter o aval de cada um dos legatários, o que na prática é uma missão
impossível. Se a operação do Google receber a bênção dos juízes, o
gigante californiano manterá um controle digital sobre quase todos os
livros publicados nos Estados Unidos.

Um dos efeitos imprevistos deste caso é que o Google irá efetivamente
encontrar-se em posição de monopólio – de um novo gênero, exercido não
sobre o aço ou as bananas, mas sim sobre o acesso à informação. A
empresa não tem nenhum rival sério. Há alguns meses, a Microsoft
renunciou ao seu próprio projeto de digitalização de livros, enquanto
as outras sociedades presentes no mercado, como a Open Knowledge
Commons (ex-Open Content Alliance) ou a Internet Archive, são
insignificantes se comparadas com o Google. Este último é o único que
dispõe dos meios necessários para digitalizar numa escala tão
gigantesca. Graças ao acordo que negociou com os autores e as
editoras, ele pode desenvolver sua plena potência financeira,
permanecendo dentro do perímetro da legalidade.

E o que acontecerá se o Google privilegiar seus lucros em detrimento
do seu público? Nada, se nos ativermos às disposições do acordo.
Apenas o Book Rights Registry, agindo em nome dos detentores de
direitos, poderia impor novas tarifas à sociedade. Além disso, nada
impediria o Google de adotar uma estratégia comparável àquela das
editoras de revistas científicas: primeiro, seduzir o cliente com uma
oferta atraente, e então, uma vez que este mordeu a isca, aumentar os
preços o mais alto possível.

Os partidários do livre comércio rebaterão que o mercado se regulará
por conta própria. Se o Google tiver a mão pesada demais, os
consumidores cancelarão suas assinaturas e, consequentemente, os
preços irão baixar.

Sem conseguir prever o futuro, tudo o que se pode fazer é ler
atentamente os termos do acordo e deles extrair algumas hipóteses. Se
o Google tornar acessíveis, a um preço sensato, os fundos acumulados
de todas as grandes bibliotecas estadunidenses, podemos aplaudir.
Afinal, não é preferível dispor de um imenso corpus de títulos, mesmo
que a um preço elevado, do que não ter acesso a nada? Sem dúvida, mas
o acordo de 2008 transforma radicalmente o mundo digital, concentrando
todos os poderes nas mãos de uma única empresa.

Hoje, nem o Google, os autores, as editoras, nem o tribunal do
distrito de Nova York estão em posição de efetuar qualquer alteração
relevante no acordo firmado. Trata-se de uma guinada da maior
importância no desenvolvimento daquilo que nós chamamos de sociedade
da informação. Se não reequilibrarmos a balança, os interesses
privados poderão em breve sobrepujar a valer o interesse público. O
sonho das Luzes ficará então mais inacessível do que nunca.


Robert Darnton

Historiador; professor da Universidade Carl H. Pforzheimer e diretor
da Biblioteca de Harvard.

Este texto foi publicado pelo The New York Review of Books em 12 de
fevereiro de 2009.

fonte: http://diplomatique.uol.com.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=2

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